Ó stora
Há alguns dias que não aparecia, mas hoje chegou cedo. Vem sempre só, senta-se no sofá do canto e fica uma hora quieto, a olhar as estantes carregadas de livros, só de vez em quando atirando os olhos pela janela, talvez para espreitar as aves. Registei a entrada: nome, número, turma, objetivo da ida à biblioteca. Foi desnecessário ouvir a resposta, pois que eu já a sabia — passar o tempo. Não gosta de conversar e responde-me com monossílabos, embrulha-se naquele estranho silêncio e ali fica, olhando vagamente as prateleiras, tamborilando os dedos ao som das teclas do meu computador.
Descobri que chega todos os dias à escola uma hora antes da aula porque aproveita a boleia do pai. Estamos sempre sós àquela hora da manhã e hoje perguntei-lhe, mais uma vez, se não queria ler um livro. Como sempre, a resposta saiu veloz:
— Eu não, detesto ler! Detesto livros! São uma seca...!
Não comentei. Esperei alguns minutos e perguntei-lhe se não gostaria de me ajudar... Eu tinha tantos livros para arrumar, tantas requisições da véspera... E depois, ele era mais leve do que eu, poderia subir mais facilmente os degraus do escadote, sem tonturas, e arrumar tudo mais rapidamente...
Levantou-se lentamente, curioso, seduzido. Subiu o escadote, num misto de surpresa e agrado, e agarrou o primeiro livro que eu lhe estendia, para o colocar na prateleira indicada.
Com os braços cheios de livros, eu ia dizendo:
— Este é na da esquerda, estes dois vão lá para cima, os dicionários ficam ao lado dos outros, na prateleira do meio...
Depois dos livros arrumados, já não regressou ao sofá. Ficou a rondar-me disfarçadamente e disparou a pergunta:
— Ó Stora, já leu estes livros todos?
Nunca mais parámos de conversar. Respondi-lhe que não:
— Cruzes, Deus me livre!
Expliquei-lhe que nem sequer gostava de todos, só de alguns. Levei-o à estante da banda desenhada, depois à da poesia, fiquei a vê-lo passar o dedo pelas lombadas, a folhear as páginas, num quase afago...
— Um dia talvez comece a ler um livro... Talvez um de poemas... — sussurrou meio envergonhado.
A campainha tocou e ele sobressaltou-se. Pegou na mochila, despediu-se e antes de sair, perguntou a medo:
— Amanhã posso ajudar outra vez a arrumar os livros?
Vi-o correr para as aulas: uma criança estouvada no seu caminhar, um passarinho a conquistar o mundo...
Um futuro leitor apaixonado — aposto eu, com toda a segurança.
Ana Paula Mateus
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